segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Quando o rebanho se une os leões dormem com fome

Li este enunciado em uma das muitas faixas que deram brilho e conteúdo à Audiência Pública ocorrida no último dia 10 de julho, nesta cidade de Igarapé-Miri, sob o comando da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Pará (CDHDC/ALEPA).
Confesso não me recordar de ter visto nos últimos meses um cartaz ou faixa com tamanha capacidade de síntese e profundo sentido. Não sei quem são seus autores, mas devo admitir que estão de parabéns por tão bonita mensagem. Aí está uma afirmação, assim compreendo, que traduz um sentimento de esperança revolucionária.
De esperança ela ensina muito porque reflete o sonho divino – projetado na sua mais perfeita criação – de que os homens e mulheres alcancem ainda nesta história o ápice de uma vida em comum(unidade). Mas ela (a afirmação) também é revolucionária quando, admitindo que em toda sociedade capitalista há explorados e exploradores, indica uma realidade possível na qual uma dada comunidade de pessoas, mobilizadas por interesses comuns, é capaz de enfrentar as mais aterrorizantes situações de ameaça e morte, vencê-las e delas sair fortalecida.
Possivelmente, muitos dos que participaram daquele encontro de lá saíram com dúvidas já disseminadas nos grupos sociais acostumados com as chamadas audiências públicas: sim, bons discursos, mas e agora? Quais os próximos passos? Esses encaminhamentos resultarão em benefícios concretos para a sociedade, ou esta discussão acabará como tantas outras “reuniões para tirar fotos e publicar nas redes sociais”? Também nesta dimensão vejo que aquele cartaz sinalizava para uma perspectiva promissora em termos de ganhos sociais.
Um envolvimento mais consciente, uma participação mais ativa e corajosa. Eis o caminho promissor indicado naquela frase. Construí essa certeza ao longo da audiência, a cada exame de fala que fiz; nas expressões de revolta e indignação, mas também de esperança e crença na vida, impressas nas intervenções do plenário; nas denúncias carregadas de verdade e desejosas de fazer valer o direito à vida como bem inalienável.
Dito e feito. Depois da Ouvidora do Sistema de Segurança Pública do Pará, Eliana Fonseca, ter lamentado a ineficiência do Estado, mas firmado o compromisso de chamar os órgãos responsáveis para uma ação conjunta em favor de Igarapé-Miri, dois fatos pós-audiência mostraram que a participação popular pode mudar os rumos de uma sociedade.
O primeiro – a repentina substituição do Delegado de Polícia responsável pela Unidade local, poucos dias após o evento – fatalmente ocorreu em função das graves denúncias oferecidas pela população. Uma mudança que sinaliza certo receio do governo Jatene face às manifestações.
Em um segundo momento, a sinalização por parte do Ministério da Justiça de que o Governo Federal está sensível ao caso de Igarapé-Miri e se dispõe a tomar providências legais para contribuir com a superação da violência e do medo hoje instalados na terra do açaí, também sugere que o clamor do povo é a ferramenta primeira e mais consistente para o enfrentamento de todo e qualquer caos social.
Estes sinais, é claro, nada garantem que os encaminhamentos produzidos pela audiência do dia 10 serão todos materializados, resultando em ganhos suficientes para resolver os graves problemas que atualmente tiram o sono do povo miriense. Mas são sinais – positivos e animadores – originados a partir da intervenção da comunidade local.
Como se sabe, nosso Igarapé-Miri vive estes dias como um barco em alto mar, cujas condições apontam para um naufrágio iminente, já que os muitos furos no casco fazem-no tomar água e há poucos tripulantes para secá-lo. Por isso, toda luz que indique terra firme não apenas fornece força e ânimo, mas também esperança de salvação.

Esse naufrágio não é natural. Ele tem sido produzido, sobretudo por uma indústria do crime que aqui implantou alguns de seus agentes dedicados a empreender a comercialização da morte, especialmente patrocinada pela farta distribuição de drogas e armas. Portanto, existem atores ganhando muito dinheiro com a desgraça da nossa gente e muitos serventes deles cumprindo a ordem de fabricar o caos. Mas, os sinais de vida estão aí. De forma clara eles mostram que quando o povo se levanta unido e participa os “leões dormem com fome”, pois o rebanho fica protegido.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Tire o Pé, meu filho, por favor!

Isaac Fonseca Araújo
Educador, escritor e jornalista

Sempre que reunia toda a família, Aparecida ficava muito feliz, sentia-se realizada ao ver os seus em comunhão. Lógico, qual mãe não ficaria? Mas, aquele almoço de domingo era mais do que especial, já que além da comemoração pela formatura de Ana Cristina – a caçula, agora Odontóloga –, também possibilitava uma confraternização pelo cinquentenário de Josenildo.
José, como era carinhosamente chamado por todos, não se importava muito com a data, não tinha por costume ficar sentado esperando que o servissem. Sempre prestativo e acolhedor, esmerava-se em ajudar Aparecida para servir a todos. Não cansava de dizer que seu primeiro presente era ver a satisfação estampada nos rostos das três filhas e, de modo particular, contemplar a alegria contagiante dos cinco netos.
Entre os presentes naquela festa familiar havia um consenso acerca da energia acima da média que João Carlos demonstrava. Talvez fosse esse o motivo para o chamarem de Joãozinho, parece bem clássico. O que ninguém imaginava é que naquele dia, justo nesse dia, o quase adolescente se superaria em peraltices.
Uma possibilidade que desde cedo incomodava o casal Pedro e Lúcia, a primogênita de Josenildo. A mãe, sempre mais atenciosa, já tinha repetido umas dez vezes a frase “tire o Pé, meu filho, por favor”! Todas elas fracassadas, é claro: Joãozinho era uma vibração só, nem o risco de cair na piscina – cuja ausência de nado constituía uma ameaça visível – nem o fogo na churrasqueira inibiam o garoto. Aparecida só olhava, achava era bonito.
___ Tudo bem, hoje é dia de festa, Lúcia, deixa o menino brincar, acalmava.
Mas Pedro igualmente monitorava e, sempre que Joãozinho subia nas cadeiras, botava os pés na água ou fazia gestos de que subiria na mesa, insistia:
___ João Carlos, tire o Pé, meu filho, por favor!
Peraltices a parte, todos se confraternizavam. Aquele era um dia muito esperado, uma realização imensurável para Aparecida e José. As estripulias das crianças? Ora, nada mais do que o vigor da criação divina. Assim todos as reconheciam.
___ Meus amores, a mesa está servida, avisou Aparecida. Como de costume vamos primeiro agradecer a Deus e, depois, José e eu queremos todos sentados, pra que essa refeição seja um momento único em nossa família, orientou.
___ Antes da oração quero dizer duas palavrinhas de agradecimento, solicitou Ana Cristina. Bom, depois já viu, falou Josenildo, a filha mais velha, um dos convidados e, finalmente:
___ Agora vamos agradecer a Deus por essa dada histórica – disse Aparecida. Em seguida cantaremos os parabéns, concluiu.
Os netos até que se sentaram, com exceção de um, que circulava a mesa como quem deseja fazer uso da palavra.
___ Bom apetite meus queridos, exclamou José.
Até aqui tudo na medida, e eis que surge o inesperado. Por alguns segundos, enquanto Josenildo deu as costas para buscar o último aperitivo, Joãozinho subiu na cadeira do avô e anunciou:
___ Também quero cantar uma música, em nome dos netos. A essa altura os pés já tocavam a toalha sobre a mesa, talvez desejasse mostrar uma coreografia, mas não se dava por satisfeito sobre a cadeira, seu alvo era mesmo a mesa.
Aparecida e Lúcia, de forma sincronizada, adiantaram-se:
___ Tire o Pé da mesa, meu filho, por favor! Você poderá cair e se machucar e, ainda, derrubar a comida, suplicaram. Mas Joãozinho fez-se indiferente, queria a todo custo roubar a cena.
___ Não seja teimoso, João Carlos, tire o Pé, por favor! Endossou Pedro. Você está desrespeitando seus pais, tire o Pé, meu filho, insistiu. Tarde demais, Joãozinho já estava com o corpo quase todo em cima da mesa.
Aparecida e Lúcia nem tiveram tempo de anunciar o final da apresentação. Com o corpo desequilibrado e sem espaço – tendo em vista a fartura de comida – bastou alguns segundos para que Joãozinho viesse abaixo. O garoto não se machucou, mas sobre a mesa não sobrou um prato com comida, porque o pé direito de Joãozinho prendeu na toalha e a arrastou até o chão.

___ Ai meu Deus, gritou José. E agora, o que vamos almoçar? Tanto que pedimos a você: tire o Pé, por favor, mas você teimou em não atender. Bonito então, agora ficará com fome como todos nós.